quarta-feira

Era uma vez uma menina que gostava de olhar



Era uma vez uma menina que cresceu olhando tudo e olhava tanto, tanto e tanto que acabou vendo demais e de certa forma entendendo um pouco de tudo .
Ela destrinchava a pequena margarida, folha a folha num bem me quer , mal me quer, só para entender como a pétala ficava presa sem cair por tantos dias.Óbvio, que para isso alguma flor acabava sendo desfeita.
A menina olhava o dia e a noite comparando acontecimentos, somando datas e calculando as horas para ver se existia alguma mágica em tudo isso ou se era apenas um cotidiano contado, inventado pelo Homem.
Ela somava e diminuía as placas dos carros para ver se encontrava algum enigma escondido, formava palavras com as letras desconexas que via por ai, tentava dar nome aos pingos de chuva, mas eles eram todos iguais e ficava bem complicado identificá-los depois .
Ela olhava de perto as formigas do jardim e as guardava na caixa vazia de fita cassete e até na caixa de fósforo para tentar entender como seres tão pequenos carregavam pedaços de folhas tão gigantes!
Ela misturava alimentos aleatoriamente só para tentar descobrir uma receita imbatível, daquela que um dia poderia sair na revista.
A menina gostava de cheiro doce e por isso esmagava plantas com perfume ou tirava perfume de flor estranha com a esperança de que o melhor cheiro do mundo pudesse finalmente ser encontrado.
Nada satisfeita, ela lia todos os livros na busca das mais loucas respostas e depois relia para tentar formular novas perguntas (para os outros).
Picotava folhas coloridas e antes de qualquer papo de sustentabilidade tentava criar um papel irresistivelmente colorido e diferente.
Ela fechava os olhos e imaginava um clipe musical ou um filme consigo mesma, vestida de heroína,fada, bruxa, menina perdida, vampira.
Todas as agendas da menina viravam diários, longos diários e ela nunca olhava para os diários finos , cor de rosa com cadeado. Bom, na verdade ela olhava , mas ela achava os mesmos finos demais para comportar trezentos e sessenta e cinco dias de história e alguns dias a mais porque ela olhava também para o espaço fora do calendário e sempre acabava criando mais uma data.
A menina gostava tanto de olhar tudo que aprendeu muita coisa além do que é normal aprender .Ela acreditava firmemente na percepção, na observação e descoberta.
Talvez se tivesse sido cientista maluca, teria conseguido pelo menos criar sonhos engarrafados, caleidoscópio de  sonhos, realizações em sachê, óculos mágico...
Um dia a menina que gostava de olhar cresceu e algumas vendas começaram a ser colocadas diante dela.
Um adulto que olha é bisbilhoteiro.
Uma criança que quer ver é curiosa ...
Quanta contradição !
Justamente quando ficamos cegos pelas vendas sociais é que o ato de olhar deveria ser estimulado e no entanto ...
A menina ficou triste, muito triste por ter perdido todo o seu dom de observar e por mais que ela tentasse não conseguia encontrar uma saída, um caminho de volta.
Pelos outros ela deixou de ver e por ela também que cedeu a essa estranha normalidade.
Como tudo tem "certo" limite, ela acordou cansada e resolveu rasgar as vendas. Ela desfiou as mais grossas feitas de fios de imposição, cortou as que tinham algum tecido que possivelmente poderia virar algo melhor e amassou e jogou foras as feitas de papel pela sua fragilidade.
Ela voltou a olhar e foi nesse momento que se viu no espellho ...
Entendeu que vendas foram criadas para esconder quem somos, com todos os defeitos, beleza e monstruosidade natural a cada ser humano.
Entendeu que poderia fazer caretas e brincar consigo mesma, que poderia simplesmente fechar os olhos para não se ver , se assim desejasse.
Mas, principalmente compreendeu que coisas são apenas adjetivos inventados e pessoas são elementos contraditórios que se agarram em padrões considerados "saudáveis e normais" para sobreviver ...
A menina olhou fundo desta vez e resolveu ser exatamente aquilo que viu: um emaranhado de sonhos desfeitos, mas que com novos olhares ainda poderão ser resgatados e realizados.
As vendas? bom, essas nunca mais foram colocadas porque ela aprendeu a pegar só aquilo que lhe agrada , o que não significa que não foram entregues, sempre são. As vendas estão na gaveta e algumas até foram usadas para polir as janelas para que a menina olhasse ainda mais ...


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